sábado, 1 de setembro de 2012

Livro: A Floresta (Cont.)


28.
Já estávamos caminhando antes que pudéssemos assimilar tudo o que tinha acontecido.
Minhas pernas doíam, meus braços doíam, meu corpo todo doía de uma forma que eu nunca achei que fosse possível. Pensei em todas as aulas de Educação Física que eu tinha faltado, todo e qualquer exercício evitado e recusado. E agora estava ali, no meio de uma interminável trilha pela floresta, sem saber aonde ir e como chegar. E como se não bastassem as correrias, subidas e escaladas, ainda tinha que enfrentar vendedores alucinados, estupradores embriagados e bruxas canibais. Pela progressão dos acontecimentos não demoraria para encontrarmos pela frente monstros, gigantes, o diabo em pessoa.
O dia tinha começado quente e abafado. O sol ainda nem se libertara da linha do horizonte e já estávamos suados e pegajosos. Ninguém falava nada, éramos uma comitiva silenciosa, em luto. As mortes de Marino e Liana, as bizarras mortes de Marino e Liana, tinham feito por nós o que o terremoto, o surgimento da floresta e dois dias se embrenhando no desconhecido não tinham conseguido. Nos fez perder as esperanças de que, em algum momento, de alguma forma, as coisas podiam voltar a ser como antes. A presença de Rhea, a possibilidade de uma coisa tão grotesca e mortal poder existir na floresta, e segundo ela, sempre ter existido na floresta, foi a constatação de que aquele mundo não era mais nosso.
Mas não era só a estupefação e o luto que nos deixavam silenciosos. Uma grande porção daquele grande nada entre nós era uma mórbida curiosidade, uma pungente interrogação. Jon, Gaspar, Perla, Amanda, Herick e Dimas, todos eles me viram fazendo coisas que eu, sinceramente, não sabia como tinha feito. Meu embate com Rhea fora de uma inconcebível rudeza, uma violência que não tinha razão ou possibilidade de existir.
Para mim, pensando em tudo depois, era um beco sem saída cheio de interrogações e temores. Era como se outra pessoa tivesse feito tudo aquilo, os socos, os pulos, a agilidade. Aquilo era tudo, menos eu. Lembrar os fatos era como ver um filme de milhões de dólares, com efeitos especiais caros e lutas coreografadas por Cheung-Yan Yuen. Mas no momento, parecera a coisa mais natural do mundo, como se fosse para aquilo, e só para aquilo, que eu servia.
Minha mochila ficou mais leve por um momento e eu me virei assustado para trás, só para encontrar Dimas tentando tirá-la de meus ombros. Era a primeira vez que olhava bem para meu amigo desde que a trupe de Jon se reunira a nós. Ele estava pálido e com olheiras até o queixo. Um feio corte vermelho repartia sua bochecha esquerda, já não sangrava, mas exibia uma brilhante coloração vermelha. Deus, eu nem queria saber como eu estava.
- Desculpe, achei que você tinha me ouvido. 
- Você me chamou? – eu perguntei meio abobalhado.
Dimas fez que sim com a cabeça, mas antes de conseguir falar um bocejo escancarou sua boca. Ele não dormia há quase vinte e quatro horas, todos nós, aliás, embora meu desmaio no encontro com Rhea me desse alguma vantagem.
- Cara, eu matava por um Red Bull agora – ele disse, esfregando os olhos cansados.
Eu sorri em concordância. Havíamos parado por poucos segundos para esse arremedo de conversa e os outros seguiram em frente. Quase todos, Perla e Herick estavam parados a poucos metros de nós, esperando.
- Vamos indo senão a gente fica para trás – eu chamei e voltamos a andar. – Que é que você queria na minha mochila?
Dimas me olhou um momento, uma expressão de dúvida no rosto, como se tivesse perdido o fio da meada. Seu estômago, então, roncou e a luz se fez em seu rosto.
- Eu ia pegar uma fruta – ele disse. – Morrendo de fome.
Tirei a mochila das costas no momento em que alcançamos Perla e Herick.
- Algum problema? – Perla perguntou, e tropeçou em uma pedra espetada para fora do solo molhado de orvalho. – Porra!
- Machucou? – Herick se abaixou para examinar-lhe o pé, no que eu achei uma atitude exagerada.
- Não, tudo bem.
Abri a mochila e um cheiro adocicado, mas não de todo agradável, me atingiu. Guardar as frutas em um local sem ventilação não era mesmo uma boa ideia, elas estavam apodrecendo com rapidez. Mas não era hora de desperdiçar, não depois do banquete de Rhea. Não faláramos sobre isso, mas sabíamos muito bem o que tínhamos comido.
- Sirva-se – eu disse, passando a mochila para Dimas.
Ele torceu o nariz ao sentir o cheiro de podre, mas não demorou a pescar da mochila uma banana, com a casca quase completamente negra, e uma maçã, em aparente bom estado.
- Você devia comer também, Perla. – Lembrei de tudo o que ela vomitara há algumas horas, não entendia como ela continuava de pé.
- Minha garganta está doendo - ela falou com um sorriso apático. – Não consigo comer nada. Não agora.
- Herick? – Eu ofereci a mochila.
Ele tirou de lá uma maçã e uma goiaba. Fechei o zíper sem pegar nada para mim, estava sem fome nenhuma.
Uma profusão de pássaros começou a fazer uma algazarra quase artificial de tão alta. O sol já se mostrara completamente, e os animais que dormiam, acordaram. A floresta exalava aquele ar de vida e movimento, e os sons distantes de pisadas, galhos quebrando, folhas arfando eram a trilha sonora perfeita para aquele despertar.
- Ô, corram aqui – Amanda gritou. Ela e os outros já não estavam à vista. – Rápido!
Corremos apreensivos, mesmo que o tom de voz dela não fosse de urgência ou medo. O solo se inclinava levemente e ao chegarmos ao topo vimos um rio reluzente e límpido. O reflexo do sol na água incomodava os olhos, mas ao mesmo tempo era maravilhoso. Jon e Gaspar já estavam dentro da água, se lavando, mergulhado. Amanda tirara o coldre da cintura e o pousara em um pedregulho às margens do rio.
Não demoramos um segundo para jogarmos as mochilas no chão e corrermos para dentro da água. Estava gelada e deliciosa. Amanda tirou a camiseta, ficando apenas de sutiã, e se juntou a nós.
Pela primeira vez desde que tudo começou nos sentimos limpos. Como se tivéssemos sido batizados de novo.

29.
Sentei-me com Perla às margens do rio. Jon vira um cardume de peixes passando perto de nós, uns tipos grandes e robustos. Não conhecia nada de peixes, mas achei aqueles grandes demais para viveram em águas doces. Falei isso para Dimas.
- Muitos peixes de água doce são enormes – ele respondeu, bom escoteiro que era. – Eu não sei bem quais são esses, mas tem a barracuda, igual aquela música do Heart – esse não tem no Brasil -, o peixe-boi num caso mais extremo. Todos de água doce.
- Como eu disse, não sei nada de peixe.
Dimas e Jon se embrenharam na floresta atrás de um galho resistente o suficiente para ser usado como arpão. Não demoraram a voltar, Dimas com um galho quase do seu tamanho. Herick lhe entregou a faca que Amanda lhe confiara no dia anterior e Dimas talhou uma das pontas do galho, transformando em uma estaca gigante.
Vamos aprender a fazer isso, vai que tem vampiros por aqui também, eu pensei enquanto Dimas e Herick se posicionavam no meio do rio, imóveis e atentos, esperando o próximo cardume.
Era isso que Perla e eu assistíamos.
- Um peixe no almoço ia ser o sonho – ela me disse, enrolando os cabelos molhados no alto da cabeça. Procurou algo no chão e pegou um graveto. Colocou-o nos cabelos, mas eles eram pesados demais para o pequeno pedaço de pau. Os cabelos lhe caíram novamente sobre os ombros.
Perla me olhou forçando uma expressão de aborrecimento e eu sorri. Cheguei perto dela e comecei a tirar os pedaços de graveto de seus cabelos longos.
- Um peixe – retomei a conversa do ponto onde tínhamos parado. – Nunca fui muito fã de peixe, sabe? E eu nem sei por quê.
Ela me olhou curiosa. Estávamos separados por poucos centímetros, a ponto de sentirmos a respiração um do outro.
- Eu comia peixe quando era criança. - Continuei mexendo nos cabelos dela mesmo já tendo catado todos os pedaços de graveto. – Mas chegou um momento em que eu parei. Sabe quando a gente deixa de comer uma coisa, fazer uma coisa, e cria uma lembrança ruim para associar a isso, só para justificar a interrupção?
Ela sorriu compreensiva, mas eu sabia por seus olhos que ela estava boiando. Eu estava divagando e quando fazia isso, corria o risco de eu mesmo me perder em minhas próprias palavras.
- Então, eu criei a história de que peixe tem gosto ruim. Em algum nível da minha consciência eu sei que não tem, mas eu finjo que tem, só para eu continuar comendo só carne. Eu prefiro. Só carne.
 Larguei os cabelos de Perla, mas continuamos perigosamente perto um do outro.
- Mas, sim. Um peixe no almoço ia ser um sonho.
Perla riu e novamente enrolou os cabelos, dessa vez colocou-os sobre um dos ombros. Eles liberaram um perfume gostoso de cabelos há muito viciados em xampu. Aquele cheiro e nossa proximidade me fizeram ter uma ligeira ereção, mesmo não sendo hora nem lugar para aquilo. Vantagens e desvantagens de ser um adolescente de dezessete anos.
- Peguei!
Era Dimas gritando. Ele e Herick pulavam na água, a estaca gigante erguida, o peixe tamanho família se contorcendo inutilmente, afogando-se no ar. Amanda, deitada na grama periférica ao rio, se sentou para aplaudir.
O almoço ia ser um sonho.

30.
 A programação e destino provisório não tinham mudado nada, segundo rápida conversa com Jon.
- Seguimos até o condomínio do seu pai – Jon me disse, enquanto nos preparávamos para seguir viagem. – Pelo que vimos lá de cima, um prédio ainda está em bom estado.
- Podemos achar muita coisa por lá – Amanda continuou. – Armas, roupas, comida. Isso, se tudo já não tiver sido saqueado.
A ideia fez meu estômago se contorcer, mas não de fome. Desde a separação de meus pais, aquele condomínio era meu destino certo nos fins de semana. E quantas vezes Dimas e eu tínhamos matado aula e corrido para lá, para jogar videogame e assistir filmes? Meu pai trabalhava o dia todo e se alguma vez desconfiou que usávamos sua casa para fugir da escola, nunca disse nada. Eu tinha roupas, livros, objetos pessoais lá. Pensar em tudo sendo revirado e levado por estranhos não era nada animador.
- Vamos seguindo, devemos estar perto agora – Jon nos convocou.
Atravessamos até a outra margem do rio. Estávamos num ponto raso, então pudemos passar pela água mesmo. No ponto mais fundo, o rio me cobria até os ombros, o que nem de longe era um impedimento. Íamos segurando as mochilas em cima de nossas cabeças, eu segurando também a de Dimas, que juntara um segundo peixe ao primeiro que ele pescara, e levava a estaca com cuidado para não deixar nosso almoço cair.
Seguimos molhados, mas extremamente satisfeitos. Seja por nosso ânimo ter melhorado um pouco ou pela luz do sol ter tomado conta de tudo, o trajeto pareceu mais convidativo, menos opressor. Aquela parte da floresta era agradável e fresca, os troncos das árvores, mais finos e retorcidos, se dividiam em galhos espaçados que eram ornados de poucas folhas, o que permitia que o sol penetrasse sem grandes obstáculos.
Vi com surpresa um macaquinho se mover sorrateiro e um pica-pau buscar alimento batendo com o bico no tronco de uma árvore. Os pássaros faziam uma festa afinada e orquestrada, e no topo das árvores vi alguns deles voando.
Herick apontou para um mico que pulava satisfeito de um galho a outro. Dimas, Perla, Herick e eu nos olhamos e sorrimos ante aquela visão incomum. Por um momento esperei ver a Bela Adormecida sair por entre as árvores cantando uma música, seguida por um séquito de animais amigos fantasiados de Príncipe Encantado.
Gaspar, Jon e Amanda seguiam à nossa frente, e o que antes parecia uma distância casual, ocasionada pelas paradas que meus amigos e eu fazíamos, se tornou uma clara separação. Cheguei a me censurar por estar ficando paranóico, mas não tinha como se enganar em relação aquilo. Quando nos apressávamos para acompanhá-los, eles aceleravam o passo e, de novo, nos deixavam para trás. E não iam em silêncio. Eu podia ouvir murmúrios, resmungos. Eles conversavam alguma coisa e não queriam que nós escutássemos. Se havíamos chegado ao ponto de guardar segredos uns dos outros, já não éramos mais um grupo, e não falava só por eles. Eu também não contara a ninguém sobre meus conhecimentos sobre Rhea, sobre o fato de eu saber o nome dela antes que ela própria o revelasse, sobre como eu completara mentalmente uma frase que ela estava proferindo.
Jon e sua turma pararam de repente, olhos à frente. Corremos até eles, dessa vez não iríamos ser deixados para trás.
Eles tinham parado nos limites de uma imensa clareira. A relva ali era mais clara e abundante. O condomínio estava a nossa frente. Os prédios eram distribuídos de modo a formar um U, com duas fileiras paralelas, e um prédio no final, no meio das duas. Era nesse que meu pai morava.
- Com você agora, Edie – Amanda disse. – Você conhece o lugar.
Arrumei a mochila nas costas e entrei na clareira. O portão de ferro que circundava o condomínio desaparecera, assim como a guarita da entrada e os carros dos inquilinos. Posicionei-me entre os dois primeiros prédios, ou entre o que restara deles, montanhas de escombros amontoados no chão. Eu era minúsculo ante aqueles esqueletos de concreto, que dois dias antes tinham sido o lar de centenas de pessoas. O prédio onde meu pai morava continuava de pé. De onde eu estava, podia vê-lo se erguer estranhamente solitário, como a primeira rosa que nasce das cinzas de uma área incinerada.
 - É aquele lá – eu apontei para o fim do corredor de destruição. – É onde meu pai morava.
E sem dizer mais nada, começamos nossa caminhada.

31.
A cada passo que dávamos, a sensação de estar em uma cidade fantasma crescia a ponto de ficar palpável.
Nossos pés amassavam a relva verde e exuberante e um som de arraste, quase como se estivéssemos pisando em um tapete felpudo, era tudo o que ouvíamos. Me perguntei se o asfalto que deveria estar ali, as pistas por onde os carros iam e vinham, estava encoberto ou teria mesmo desaparecido.
- Está tão quieto aqui – Gaspar disse, colocando as mãos no revólver que trazia no coldre de ombro improvisado, quase sem perceber.
Alguns murmuraram concordando, mas ninguém falou nada.
Andávamos em um ritmo constante, pouco parando ou observando. Íamos olhando para frente e só para frente, como se a visão da pilha dos prédios destruídos pudesse trazer à tona fantasmas raivosos e inconformados, reivindicando mais uns poucos momentos de vida.
A travessia pelos blocos A, B, C e D foi tranquila e rápida, e já estávamos na metade do caminho antes que percebêssemos. O prédio onde meu pai morava se mostrava cada vez mais imponente e inacreditável, uma torre de fantasia, um oásis em meio à destruição.
- Shhh – Jon disse, levantando o braço para deter nossos passos. – Ouvi alguma coisa.
Olhamos para os lados em alerta, preocupados. Os cabelos de minha nuca se arrepiaram de repente. O vento soprava as copas das árvores nos proporcionando uma trilha sonora macabra e dispensável. Foi quando ouvimos claramente um som. Um pequeno deslizamento vindo da ruína de um dos edifícios.
Cada um olhou para um lado diferente, sem saber exatamente de onde o som vinha. Formamos um círculo, um de costas para o outro, encarando os prédios reduzidos a montes de entulho, móveis e lembranças. Lembrei do terremoto, o primeiro, e de quantos tinham sido pisoteados no colégio, quantos estavam sepultados sob os escombros da ala principal. Sacudi a cabeça para me livrar de pensamentos pouco úteis no momento, que incluíam pessoas se remexendo embaixo daquele monte de concreto, querendo viver mais um pouco.
- Acho melhor irmos em frente – Amanda disse. – Este lugar está me dando arrepios.
- Mas vamos ficar de olho – Jon retrucou, o revólver firme em sua mão.
Os sons de deslizamento nos seguiram prédio após prédio, mesmo que nada estivesse à vista. O ritmo de nossos passos se acelerou, e eu me percebi ofegante à medida que nos aproximávamos do Bloco I, lar do meu pai.
- Olha lá, cara.
Herick estava apontando para o primeiro dos nove andares do Bloco I. Diferente dos demais, cujas janelas estavam fechadas, algumas cobertas por cortinas, outras abertas, mas vazias e tristes, como olhos cegos mirando o nada, um movimento incomum e extremamente reconfortante prendeu nossos olhos.
- É gente. É gente! – Gaspar berrou antes de explodir em uma gargalhada.
- O que é que eles estão fazendo? – ouvi Perla murmurar ao meu lado.
De onde estávamos já podíamos ver bem. Cerca de uma dúzia de pessoas se projetava das janelas escancaradas, abanando os braços com energia, quase rispidez, de modo a chamar nossa atenção. O vento trazia palavras e frases gritadas por eles, mas eu não conseguia entender nada.
- Será que eles estão bem? – eu perguntei para o resto do grupo, que apertou o passo para chegar mais rápido ao prédio.
- Claro – Dimas respondeu, já ofegante. – Só estão querendo que a gente veja que eles estão ali e...
Foi quando a perna de Dimas subiu no ar e ele caiu com as costas no chão. Perla soltou um grito breve de surpresa e num piscar de olhos todos estávamos agrupados em volta de meu amigo.
- Que droga!
Dimas tinha escorregado em alguma coisa que tínhamos deixado passar, tamanha era a empolgação de abreviar a jornada. Herick e eu içamos Dimas pelos braços, e ele já estava de pé em um minuto.
- Ai, você se machucou. – Amanda pegou o braço de Dimas, que estava rubro de sangue.
- Não... – Dimas conseguiu dizer. – Não é meu.
E não era mesmo. A queda não tinha machucado Dimas, mas o que estava no chão tinha sujado seus braços e as costas de sua camisa. Dimas escorregara em um pedaço de carne banhado em sangue. E sangue recente, o que era pior.
- E isso, agora? – Jon se abaixou para examinar aquilo. Tinha uma coloração arroxeada e lembrava horrivelmente o pedaço de um intestino. Um intestino humano.
Foi quando os pelos de minha nuca se eriçaram de novo. E não só eles, todo o cabelo do meu corpo se arrepiou ao mesmo tempo e uma estranha sensação gelada invadiu meu estômago.
- Levanta daí, Jon – eu disse, meus olhos fixos na galera que estava no prédio, ainda agitando os braços, ainda gritando alguma coisa.
E ouvimos um riso. Um som estridente e macabro que nos fez chegar perto um dos outros. Era único no início, mas depois se multiplicou, como se algo chegasse por todos os lados, nos cercasse, e quisesse anunciar isso.
Foi então que um animal surgiu no topo dos destroços do Bloco E. Escalara as ruínas por trás, fazendo sua cabeça surgir primeiro, depois o corpo esguio. Parecia um lobo, mas era mais magro e um pouco maior. Tinha um focinho longo, olhos amarelos e brilhantes, pelo marrom salpicado de cinza.
- Que porra é essa? – Amanda falou, tirando sua pistola do coldre.
Eu sabia.
- Hiena. Uma hiena.
Mas não era apenas uma hiena. Eu mal tinha acabado de falar e outra hiena apareceu atrás da primeira, e outra atrás desta. À nossa volta, os animais apareciam por detrás dos escombros, saíam por aberturas no concreto, surgiam no topo dos destroços. Não tinha um prédio destruído que não estivesse amontoado com os bichos, que tinham nos olhos malignos uma expressão clara e reconhecível. Fome.
 Os risos estridentes tomaram conta do ar, e não conseguíamos ouvir mais nada. Era enlouquecedor. Estávamos vulneráveis no meio daquele corredor polonês, em clara desvantagem. O Bloco I, que antes parecera tão próximo, estava quase inalcançável e as palavras que as pessoas gritavam de lá eram, com certeza, corram, fujam.
Farejando nosso medo, as hienas aos poucos iam abandonando suas fortalezas de concreto e avançando em nossa direção. As bocarras abertas deixavam escapar uma baba espessa e nos davam um vislumbre de suas presas afiadas.
E sem esperar reação, a primeira atacou.

32.
O animal dobrou as patas traseiras para ganhar impulso e saltou em nossa direção. Presas a mostra, assassínio nos olhos. Com aquela ânsia e fúria podia estraçalhar o pescoço de qualquer um de nós.
Um estrondo se vez ouvir em toda a clareira, e um flash de luz chamou minha atenção, mas não o suficiente para eu perder o que aconteceu em seguida. A poucos centímetros de nós, a cabeça da hiena explodiu como um Big Bang de sangue, cérebro e ossos. O corpo do animal desabou no chão, inanimado.
Foi só aí que eu olhei para o lado, e minha surpresa foi grande o suficiente para me fazer cair de joelhos, mas eu consegui me manter em pé. Estava esperando que Jon, Amanda ou mesmo Gaspar tivessem sido responsáveis pelo tiro certeiro que mandou a hiena para o inferno dos bichos, mas era Perla. Os olhos fixos, os lábios contraídos, os braços estendidos à frente, a pistola firme em suas mãos. O estrondo do tiro e o destino de uma de suas companheiras assustaram a alcatéia de hienas por um segundo, mas só um segundo mesmo.
- Corram!
Jon gritou e não precisamos de um segundo comando para obedecer.
As hienas correram atrás de nós, todas ao mesmo tempo, como uma onda teleguiada. Embora elas viessem por todos os lados, eram as que estavam na frente que nos preocupavam mais, pois eram um obstáculo palpável entre nós e a segurança do edifício intacto.
Repentinamente, os risos dementes dos bichos não eram os únicos sons penetrantes naquele campo de batalha inusitado. Estampidos de tiros, aos montes, começavam a ferir nossos ouvidos, enquanto hienas mortas caíam no chão, uma atrás da outra.
Jon, Gaspar, Amanda e Perla comandavam a matança dos bichos, mas para cada uma que caía, outras cinco surgiam como monstros kamikazes. Herick corria a meu lado, surpreso, mas raivoso, saltando a cada investida dos animais que não arrancavam pedaços de suas pernas por poucos centímetros.
Era inacreditável a quantidade de hienas que nos cercava. Elas acompanhavam nossos passos, avançando vez ou outra, sendo repelidas por chutes, mas voltando mais raivosas e sedentas.
 Cansada de rodear e amedrontar, uma hiena saltou, mirando o pescoço de Dimas, babando de desejo. Dimas se voltou a tempo de levantar a estaca que carregava. O bicho voou direto para a morte com um ganido baixo e breve. Dimas levantou a estaca e a sacudiu com força, fazendo a hiena voar e se chocar com uma irmã, que se preparava para armar o bote. Os peixes foram junto. Nada de almoço dos sonhos.
Quando a clareira virou um campo de concentração para as hienas, o resto do bando parou de enrolar e se voltou contra nós com fúria demente. Se retraçando em suas patas traseiras, as hienas se jogavam contra nós, mordendo, rugindo, rindo. A porta do Bloco I já estava a poucos metros, só mais uns passos e estaríamos salvos.
Os tiros que até então pipocavam, cessaram de repente. As balas tinham acabado e parar para recarregar estava longe de ser uma opção. Mais hienas avançavam por ar e por terra, e entre pulos e chutes, gritos de dor eram ouvidos quando uma presa arranhava uma perna ou um braço.
Pela porta de entrada transparente do Bloco I, podia-se ver uma movimentação intensa e apreensiva, todos esperando que estivéssemos próximos o suficiente para nos deixar entrar. Pelo menos assim eu esperava.
Um rosnado próximo demais me fez vacilar um segundo, e uma dor excruciante subiu pela minha perna, endurecendo meus quadris. Uma olhada para baixo e eu vi uma das hienas com as presas agarradas à minha perna, a pressão era tão forte que eu pensei que ela fosse explodir.
Ouvi Perla gritar e imaginei que fosse por minha causa. Com apenas uma perna disponível, pendi perigosamente para frente, se eu caísse seria um homem morto. Movido por um impulso inexplicável - como os que passaram a me assolar desde o início de toda aquela loucura - joguei minha perna para frente, com força, o mesmo gesto que faria um atacante prestes a marcar o gol de sua vida.
A hiena largou minha perna e saiu voando, derrubando suas irmãs que ainda estavam em nosso caminho e indo se chocar contra a porta transparente do Bloco I. Uma rachadura se formou com a pancada, mas a porta se manteve inteira, e eu respirei aliviado por ela ser blindada.
Com o resto do caminho aberto como se fosse o mar vermelho, continuamos nossa maratona antes que as hienas voltassem à ativa novamente. Dimas e Herick praticamente me carregaram pelo resto do caminho.
As hienas se reagruparam rapidamente e se voltaram contra nós, mas era tarde demais. Chutando o corpo do bicho que jazia à porta do Bloco I, Jon nem precisou bater.
- Rápido, pelo amor de Deus, homem - berrou uma voz familiar. Não familiar ruim, como era Rhea, mas familiar boa, que trazia lembranças dos domingos na casa de meu pai, dos passeios pelo condomínio, do som da gaita.
- Tyson? – chamei, e a porta se fechou.
O hall do Bloco I estava escuro e um tanto abafado. Minha visão turva detectou a presença de muitas pessoas. Vinte, trinta, não consegui contar.
- Fala comigo, cara – era a voz de Dimas, distante. – Edie...
Minha perna doía horrivelmente, queimava, parecia que ia inchar e implodir.
Alguém apertou minha mão.
- Edie – era voz de Tyson, preocupada, mas ainda descontraída. – Edie, fala comigo...
E eu apaguei.

FIM DA PARTE 1

Continua...

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